domingo, 8 de março de 2020

Combate pela democracia ou ativismo acadêmico em torno da Comissão da Verdade




José Vieira da Cruz*


O combate em favor do Estado Democrático de Direito e de suas garantias ganhou força e difusão após o fim da Segunda Guerra Mundial.  A partir daquele instante, em meados da década de 1940, a humanidade parecia ter compreendido as duras lições impostas pelos regimes de força baseados em pensamentos totalitários, racistas, fascistas, nazistas e de extermínio dos diferentes e dos divergentes. Em seu lugar, a democracia e o respeito aos direitos humanos, com todos os seus desafios e limites, consolidava-se como um caminho para o desenvolvimento em diferentes países no Ocidente Cristão. Não obstante essas lições, a partir da década de 1960, o Brasil e grande parte da América Latina sucumbiram a golpes e a ditaduras civis e militares.


No caso Brasileiro, passados 21 anos, a ditadura cedeu lugar ao movimento de transição para redemocratização do país através de eleições presidenciais e da promulgação, em 1988, da atual Constituição Federal.  Os atuais tempos democráticos pareciam, por um lado, fazer voltar as lições de rejeição das duas recentes ditaduras: a Varguista (1937-1945) e a Militar (1964-1985), e, por outro lado,  também parecia evocar os ensinamentos de repulsa aos horrores, mazelas, crimes e excessos  praticados por elas e por todos os regimes totalitários e antidemocráticos. Sob esse horizonte, seguiram a esse processo o combate em favor da democracia através de eleições livres e diretas, da promulgação da atual Constituição Federal, da aprovação das constituições estaduais, do exercício da liberdade de imprensa, do exercício da autonomia universitária, da instituição da Comissão Nacional da Verdade e das comissões estaduais da verdade. Além de uma série de outras iniciativas e ações. A democracia parecia, sem contestações, reencontrar entre nós um ambiente de aprendizado, diálogo, consenso e construção de significados. Um contexto muito diferente das contradições do atual cenário político brasileiro.
É, sob este preâmbulo, possível compreender a proposta do livro “Resistência e adesão ao Regime Militar: ensaios a partir da Comissão da Verdade em Sergipe”, de autoria de Afonso Nascimento, publicado pela Criação Editora e lançado neste mês de março de 2020. O livro apresenta, oito partes, formadas por artigos afins, publicados na imprensa pelo autor, sobre temas relacionados ao regime militar e sobre a Comissão Estadual da Verdade de Sergipe. 

No livro em tela, os artigos, apesar de escritos em ocasiões diferentes, foram reunidos a partir de discussões alinhadas a um eixo central e, ao mesmo tempo, transpassados por debates de um passado que persiste em permanecer no presente.
Frente ao temário sobre resistência ou adesão ao Regime Militar, tão logo o leitor ultrapasse a introdução, tem-se, na parte I, sete artigos relacionados a Comissão da Verdade. Esses artigos revelam o envolvimento do autor em debates relacionados à “teoria dos dois demônios”; isto é, sobre o real envolvimento de civis e de militares em práticas contra os direitos humanos e a favor da ditadura.  Nesta parte do livro, é revelado alguns detalhes dos bastidores que ajudam na compreensão dos motivos que promoveram a demora e as indecisões para criação da referida Comissão. A este respeito, preciso registar que antes de minha atual vinculação profissional, como docente da Universidade Federal de Alagoas, tomei parte da referida comissão, criada em 2015. Entretanto, afastei-me dos referidos trabalhos, em razão de ter assumido a Vice-reitoria da Universidade Federal de Alagoas. Mas, mesmo à distância, continuei a acompanhar as atividades relacionadas à Comissão Estadual da Verdade Paulo Barbosa.


A segunda parte do livro, intitulada “Comunistas”, compostas de treze artigos, pode provocar aos desavisados alguma incompreensão quanto à posição acadêmica e política do autor. No Brasil, há algum tempo, falar em comunistas ou contra eles, em regra, infere a dualidade esquerda x direita sem margens para críticas, autocríticas ou possíveis ambivalências. A leitura da obra “Resistência e adesão ao Regime Militar” permitirá a cada leitor tecer sua posição a respeito.


No tocante as posições de Afonso Nascimento, é importante esclarecer sobre sua formação que ele é bacharel em Direito pela UFS, mestre em Direito pela UFSC e Diplôme d’ Etudes Appronfondies em Estudos Políticos pela Université de Montpellier I (França). Enquanto docente ensinou Teoria do Estado e Sociologia do Direito na PUC/RJ, UFRJ, Paul University (EUA), entre outras instituições. Na UFS, além da vinculação ao Departamento de Direito, dirigiu o Núcleo de Pós-graduação em Ciências Sociais, foi Pró-reitor de Assistência Estudantil e Assessor de Relações Internacionais. Publicou diversas obras, dentre a quais destaco “Uma crítica à concepção jurídica do Estado” e “Incursões de um intelectual na mídia escrita”. Organizou também “Pensar Sergipe I e II” e “Memórias de políticos sergipanos no século XX”. É preciso registrar ainda que além de sua formação acadêmica no Brasil e em outros países, de sua atuação docente na graduação e na pós-graduação, de sua experiência administrativa e de sua contribuição como membro da Comissão Estadual da Verdade de Sergipe, sua frequente e provocativa atuação junto a imprensa. Afora isso, suas interlocuções com os estudos já produzidos a respeito do tema, em particular, a obra do historiador e cientista político Ibarê Dantas, intitulada “Tutela Militar em Sergipe”, baliza academicamente seus escritos.


Observa-se, portanto, que Nascimento, além de acadêmico, membro da comissão estadual da verdade e articulista junto à imprensa, nos últimos oito anos publicou frequentemente textos incitando o debate sobre a justiça de transição e acontecimentos relacionados à ditadura militar, à defesa democracia, aos direitos humanos e ao papel político do judiciário, da UFS e da sociedade. E, de modo bastante contundente, sobre a importância do Estado de Sergipe ter uma comissão da estadual da verdade.
Sob este horizonte de experiência, com algum risco e os devidos reparos históricos, é possível aproximar o perfil de Afonso Nascimento aos de Tobias Barreto, Silvio Romero e seus discípulos quanto ao apego ao debate científico no campo do Direito, da Sociologia e da História, como também, de não se furtar aos debates e polêmicas de seu tempo. Em outra comparação, talvez mais próxima  a formação franco-estadunidense de Nascimento, suas posições políticas e acadêmicas aproximam-se, em certo sentido, das ideias do sociólogo estadunidense Richard Sennett   - um democrata liberal, averso ao socialismo, progressista, defensor dos direitos humanos e que, em lugar de números e análises quantitativas, faz uso de experiências e acontecimentos para aprofundar o conhecimento a respeito da realidade social que o rodeia.


Luciano Oliveira, doutor pela Escola de Altos em Ciências Sociais (Paris), professor da UFPE e contemporâneo de Afonso Nascimento na época de estudante da Faculdade de Direito de Sergipe na década de 1970, no então prédio da rua da Frente, atual Cultarte, ao comentar a formação do autor releva sua experiência como estudante de Direito, militante da Ala Jovem do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), colaborador do jornal alternativo “O ReKado”, e, também, da sua solidariedade aos colegas vítimas da chamada “Operação Cajueiro” e das ações da Assessoria Especial de Segurança e Informação (AESI), braço do Sistema Nacional de Segurança (SNI) na UFS.


A dúvida latente no texto é o quanto Nascimento teria embarcado na “Teoria dos dois demônios”. Aparentemente ele não estudou apenas os “Comunistas”. Alternadamente, em diferentes partes do livro, ele estuda a Escola Superior de Guerra (ESG) e a Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG), na parte IV; e os militares, os dedos-duros e os agentes repressivos, na parte VIII. Revelando, no limite do possível, a trama de relações, adesões e compromissos tecidos por militares e por civis. Neste ponto, o autor parece se redimir do fato de não ter abordado o debate sobre a dimensão militar ou civil-militar da ditadura. Embora tenha evitado formalmente essa polêmica e utilizado em toda a obra o termo militar associando-o a regime, golpe e ditadura, o leitor atento perceberá no livro fissuras e suturas tecidas entre os diferentes segmentos da sociedade e do Estado que atuaram resistindo ou aderindo ao Regime Militar. Esse debate, embora espinhoso, é fundamental para compreensão das contradições e reminiscências que emergem das mais diferentes formas tanto do passado recente quanto do atual horizonte político do país.


O autor destina também especial atenção a vida universitária, em particular, a UFS e a Faculdade de Direito, resgatando a relação da instituição, da faculdade, dos professores e dos estudantes com o Regime e com a AESI/SNI. Já na parte VI, o autor destaca de modo especial o ativismo estudantil frente o Regime e a AESI/SNI, analisando o papel do Centro Acadêmico Silvio Romero, as experiências de resistência estudantis na  década de 1970, o engajamento do jornal “O Rekado” – equivalente ao jornal Pasquim –, a dura repressão imposta pela “Operação Cajueiro” aos ativistas políticos dentre outros nuances.  Em outra parte do livro, o autor destaca as experiências de secundaristas, universitários e políticos que atuaram junto ao MDB e a Ala Jovem do MDB. Este último ponto também nos parece muito atual, tanto dado o crescente número de estudos e memórias publicadas a respeito quanto ao protagonismo político de seus participantes, muitos dos quais em atividade na vida política e econômica.


Dentre os artigos resgatados três deles são destinadas a atuação da Igreja Católica. Neles o papel de três personalidades eclesiásticas é destacado: a de Dom Brandão de Castro, Dom Távora e Dom Luciano. Além de descrever a posição dos referidos religiosos o autor tece uma visão crítica quanto ao papel e a importância destes no período da ditadura militar. Apesar do esforço do autor, a atuação da Igreja Católica no período ainda é um campo que demanda estudos mais aprofundados.
O passado de quem viveu a ditatura, o presente de quem acompanhou junto a comissão da verdade os depoimentos de suas vítimas, confundem-se com a expectativa de futuro do autor de continuar a combater em favor da democracia e de ser um ativista em favor da atual ordem institucional. Um debate cada vez mais caro nos dias em que vivemos. Neste sentido, os escritos de Afonso Nascimento, reunidos neste livro, possuem dupla perspectiva: a do combate a ditaduras e em favor da democracia e a do ativismo acadêmico no campo jurídico. Em suma, esta é uma obra provocativa, de fácil leitura, recomendada tanto para os acadêmicos de diferentes áreas do conhecimento quanto para a comunidade de leitores interessada em compreender o passado recente de nosso país e os desafios da atual experiência democrática.


*José Vieira da Cruz, é Doutor em História pela UFBA, professor da UFAL, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE) e da Academia Alagoana de Educação (ACALE)

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