José Vieira da Cruz*
O combate em favor do Estado Democrático de Direito e de suas garantias ganhou força e difusão após o fim da Segunda Guerra Mundial. A partir daquele instante, em meados da década de 1940, a humanidade parecia ter compreendido as duras lições impostas pelos regimes de força baseados em pensamentos totalitários, racistas, fascistas, nazistas e de extermínio dos diferentes e dos divergentes. Em seu lugar, a democracia e o respeito aos direitos humanos, com todos os seus desafios e limites, consolidava-se como um caminho para o desenvolvimento em diferentes países no Ocidente Cristão. Não obstante essas lições, a partir da década de 1960, o Brasil e grande parte da América Latina sucumbiram a golpes e a ditaduras civis e militares.
No caso Brasileiro, passados 21 anos, a ditadura cedeu lugar ao
movimento de transição para redemocratização do país através de eleições
presidenciais e da promulgação, em 1988, da atual Constituição Federal. Os atuais tempos democráticos pareciam, por
um lado, fazer voltar as lições de rejeição das duas recentes ditaduras: a
Varguista (1937-1945) e a Militar (1964-1985), e, por outro lado, também parecia evocar os ensinamentos de
repulsa aos horrores, mazelas, crimes e excessos praticados por elas e por todos os regimes
totalitários e antidemocráticos. Sob esse horizonte, seguiram a esse processo o
combate em favor da democracia através de eleições livres e diretas, da
promulgação da atual Constituição Federal, da aprovação das constituições
estaduais, do exercício da liberdade de imprensa, do exercício da autonomia
universitária, da instituição da Comissão Nacional da Verdade e das comissões
estaduais da verdade. Além de uma série de outras iniciativas e ações. A
democracia parecia, sem contestações, reencontrar entre nós um ambiente de
aprendizado, diálogo, consenso e construção de significados. Um contexto muito
diferente das contradições do atual cenário político brasileiro.
É, sob este preâmbulo, possível compreender a proposta do livro
“Resistência e adesão ao Regime Militar: ensaios a partir da Comissão da
Verdade em Sergipe”, de autoria de Afonso Nascimento, publicado pela Criação
Editora e lançado neste mês de março de 2020. O livro apresenta, oito partes,
formadas por artigos afins, publicados na imprensa pelo autor, sobre temas
relacionados ao regime militar e sobre a Comissão Estadual da Verdade de
Sergipe.
No livro em tela, os artigos, apesar de escritos em ocasiões
diferentes, foram reunidos a partir de discussões alinhadas a um eixo central
e, ao mesmo tempo, transpassados por debates de um passado que persiste em
permanecer no presente.
Frente ao temário sobre resistência ou adesão ao Regime Militar,
tão logo o leitor ultrapasse a introdução, tem-se, na parte I, sete artigos
relacionados a Comissão da Verdade. Esses artigos revelam o envolvimento do
autor em debates relacionados à “teoria dos dois demônios”; isto é, sobre o
real envolvimento de civis e de militares em práticas contra os direitos
humanos e a favor da ditadura. Nesta
parte do livro, é revelado alguns detalhes dos bastidores que ajudam na
compreensão dos motivos que promoveram a demora e as indecisões para criação da
referida Comissão. A este respeito, preciso registar que antes de minha atual
vinculação profissional, como docente da Universidade Federal de Alagoas, tomei
parte da referida comissão, criada em 2015. Entretanto, afastei-me dos
referidos trabalhos, em razão de ter assumido a Vice-reitoria da Universidade
Federal de Alagoas. Mas, mesmo à distância, continuei a acompanhar as
atividades relacionadas à Comissão Estadual da Verdade Paulo Barbosa.
A segunda parte do livro, intitulada “Comunistas”, compostas de
treze artigos, pode provocar aos desavisados alguma incompreensão quanto à
posição acadêmica e política do autor. No Brasil, há algum tempo, falar em
comunistas ou contra eles, em regra, infere a dualidade esquerda x direita sem
margens para críticas, autocríticas ou possíveis ambivalências. A leitura da
obra “Resistência e adesão ao Regime Militar” permitirá a cada leitor tecer sua
posição a respeito.
No tocante as posições de Afonso
Nascimento, é importante esclarecer sobre sua formação que ele é bacharel em
Direito pela UFS, mestre em Direito pela UFSC e Diplôme d’ Etudes Appronfondies
em Estudos Políticos pela Université de Montpellier I (França). Enquanto
docente ensinou Teoria do Estado e Sociologia do Direito na PUC/RJ, UFRJ, Paul
University (EUA), entre outras instituições. Na UFS, além da vinculação ao
Departamento de Direito, dirigiu o Núcleo de Pós-graduação em Ciências Sociais,
foi Pró-reitor de Assistência Estudantil e Assessor de Relações Internacionais.
Publicou diversas obras, dentre a quais destaco “Uma crítica à concepção
jurídica do Estado” e “Incursões de um intelectual na mídia escrita”. Organizou
também “Pensar Sergipe I e II” e “Memórias de políticos sergipanos no século
XX”. É preciso registrar ainda que além de sua formação acadêmica no Brasil e
em outros países, de sua atuação docente na graduação e na pós-graduação, de
sua experiência administrativa e de sua contribuição como membro da Comissão
Estadual da Verdade de Sergipe, sua frequente e provocativa atuação junto a
imprensa. Afora isso, suas interlocuções com os estudos já produzidos a
respeito do tema, em particular, a obra do historiador e cientista político
Ibarê Dantas, intitulada “Tutela Militar em Sergipe”, baliza academicamente seus
escritos.
Observa-se, portanto, que Nascimento, além de acadêmico, membro
da comissão estadual da verdade e articulista junto à imprensa, nos últimos
oito anos publicou frequentemente textos incitando o debate sobre a justiça de
transição e acontecimentos relacionados à ditadura militar, à defesa
democracia, aos direitos humanos e ao papel político do judiciário, da UFS e da
sociedade. E, de modo bastante contundente, sobre a importância do Estado de
Sergipe ter uma comissão da estadual da verdade.
Sob este horizonte de experiência, com
algum risco e os devidos reparos históricos, é possível aproximar o perfil de Afonso
Nascimento aos de Tobias Barreto, Silvio Romero e seus discípulos quanto ao
apego ao debate científico no campo do Direito, da Sociologia e da História,
como também, de não se furtar aos debates e polêmicas de seu tempo. Em outra
comparação, talvez mais próxima a formação
franco-estadunidense de Nascimento, suas posições políticas e acadêmicas
aproximam-se, em certo sentido, das ideias do sociólogo estadunidense Richard Sennett
- um democrata liberal, averso ao socialismo, progressista, defensor dos
direitos humanos e que, em lugar de números e análises quantitativas, faz uso
de experiências e acontecimentos para aprofundar o conhecimento a respeito da
realidade social que o rodeia.
Luciano Oliveira, doutor pela Escola de
Altos em Ciências Sociais (Paris), professor da UFPE e contemporâneo de Afonso
Nascimento na época de estudante da Faculdade de Direito de Sergipe na década
de 1970, no então prédio da rua da Frente, atual Cultarte, ao comentar a
formação do autor releva sua experiência como estudante de Direito, militante
da Ala Jovem do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), colaborador do jornal
alternativo “O ReKado”, e, também, da sua solidariedade aos colegas vítimas da
chamada “Operação Cajueiro” e das ações da Assessoria Especial de Segurança e
Informação (AESI), braço do Sistema Nacional de Segurança (SNI) na UFS.
A dúvida latente no texto é o quanto Nascimento
teria embarcado na “Teoria dos dois demônios”. Aparentemente ele não estudou
apenas os “Comunistas”. Alternadamente, em diferentes partes do livro, ele
estuda a Escola Superior de Guerra (ESG) e a Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra (ADESG), na parte IV; e os militares, os dedos-duros
e os agentes repressivos, na parte VIII. Revelando, no limite do possível, a
trama de relações, adesões e compromissos tecidos por militares e por civis. Neste
ponto, o autor parece se redimir do fato de não ter abordado o debate sobre a
dimensão militar ou civil-militar da ditadura. Embora tenha evitado formalmente
essa polêmica e utilizado em toda a obra o termo militar associando-o a regime,
golpe e ditadura, o leitor atento perceberá no livro fissuras e suturas tecidas
entre os diferentes segmentos da sociedade e do Estado que atuaram resistindo
ou aderindo ao Regime Militar. Esse debate, embora espinhoso, é fundamental
para compreensão das contradições e reminiscências que emergem das mais
diferentes formas tanto do passado recente quanto do atual horizonte político
do país.
O autor destina também especial atenção
a vida universitária, em particular, a UFS e a Faculdade de Direito, resgatando
a relação da instituição, da faculdade, dos professores e dos estudantes com o
Regime e com a AESI/SNI. Já na parte VI, o autor destaca de modo especial o
ativismo estudantil frente o Regime e a AESI/SNI, analisando o papel do Centro
Acadêmico Silvio Romero, as experiências de resistência estudantis na década de 1970, o engajamento do jornal “O
Rekado” – equivalente ao jornal Pasquim –, a dura repressão imposta pela
“Operação Cajueiro” aos ativistas políticos dentre outros nuances. Em outra parte do livro, o autor destaca as
experiências de secundaristas, universitários e políticos que atuaram junto ao MDB
e a Ala Jovem do MDB. Este último ponto também nos parece muito atual, tanto
dado o crescente número de estudos e memórias publicadas a respeito quanto ao
protagonismo político de seus participantes, muitos dos quais em atividade na
vida política e econômica.
Dentre os artigos resgatados três deles
são destinadas a atuação da Igreja Católica. Neles o papel de três
personalidades eclesiásticas é destacado: a de Dom Brandão de Castro, Dom
Távora e Dom Luciano. Além de descrever a posição dos referidos religiosos o
autor tece uma visão crítica quanto ao papel e a importância destes no período
da ditadura militar. Apesar do esforço do autor, a atuação da Igreja Católica
no período ainda é um campo que demanda estudos mais aprofundados.
O passado de quem viveu a ditatura, o
presente de quem acompanhou junto a comissão da verdade os depoimentos de suas
vítimas, confundem-se com a expectativa de futuro do autor de continuar a
combater em favor da democracia e de ser um ativista em favor da atual ordem
institucional. Um debate cada vez mais caro nos dias em que vivemos. Neste
sentido, os escritos de Afonso Nascimento, reunidos neste livro, possuem dupla perspectiva:
a do combate a ditaduras e em favor da democracia e a do ativismo acadêmico no
campo jurídico. Em suma, esta é uma obra provocativa, de fácil leitura, recomendada
tanto para os acadêmicos de diferentes áreas do conhecimento quanto para a
comunidade de leitores interessada em compreender o passado recente de nosso
país e os desafios da atual experiência democrática.
*José
Vieira da Cruz, é Doutor em História pela UFBA, professor da UFAL, membro do
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE) e da Academia Alagoana de
Educação (ACALE)
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